Da “Gaudium et spes” à Mensagem de Bento XVI para o Dia Mundial da Paz
Manuel Augusto Rodrigues
1. A “Gaudium et Spes”, considerado um dos mais importantes textos do Concílio, revela a Igreja «ad extra» enquanto a “Dei Verbum” se aplica à Igreja «ad intra». Em quadra de Natal não será deslocado falar daquele texto conciliar que contém uma visão notável acerca dos grandes problemas da actualidade, todos eles centrados no tema do homem, o grande actor no grandioso teatro da história. As questões tratadas na “Gaudium et spes” prendem-se com a chegada de Jesus que veio dar um sentido novo ao ser humano e ao mundo na continuação da tradição hebraica. A mensagem do Papa para o Dia de Paz está estreitamente interligada com o conteúdo da “Gaudium et spes”. De Belém de Judá ecoam ao longo dos tempos as promessas de Yhwh concretizadas pelo Nazareno que iniciou a última fase da história, a da escatologia final. Como lemos em Miqueias, de Belém «sairá para mim aquele que deve ser o dominador em Israel; as suas origens vêm da de tempos antigos, dos dias mais remotos…até que der à luz aquela que deve dar á à luz; e o resto dos teus irmãos voltará aos filhos de Israel...Habitarão em segurança, porque ele então será grande até aos extremos da terra. Ele mesmo será a Paz!» (Mq 5, 1-4). Na paz que em hebraico significa a realização total, a perfeição absoluta. Esta abrange as ideias do ser humano criado à imagem de Deus, do pecado e da redenção, da instauração de uma nova ordem moral, da renovação permanente, da esperança e da alegria e da salvação final. A “Gaudium et spes” serve-se frequentemente de outros textos conciliares e de vários discursos e encíclicas de João XXIII, Paulo VI e João Paulo II como a “Pacem in terris”, a “Mater et Magistra”, a “Redemptor hominis”, a “Ecclesiam suam”. A “Caritas in veritate” de Bento XVI e não poucos estudos de vários especialistas muito ajudam a compreender a “Gaudium et spes”. Entre eles salientamos Chénu, Congar, Pereña Vicente, J. Mourroux e de vários autores a obra “L’Église dans le monde de ce temps”. A constituição abre com alguns dados sobre a estreita solidariedade da Igreja com a família humana, os destinatários do texto e o serviço do homem. Como exposição preliminar aborda a condição do homem no mundo actual, caracterizada pela a esperança e pela angústia, pela série de mudanças profundas e com alterações psicológicas, morais e religiosas, por desequilíbrios enormes, por aspirações cada vez mais universalistas e por interrogações profundas do género humano. Heidegger denunciava a mentalidade moderna como «a essência obnubilante da técnica». A primeira parte trata da Igreja e da vocação do homem interpelado a responder aos apelos do Espírito Santo. No cap. I aborda a dignidade da pessoa como imagem de Deus (o pecado, a alma e o corpo, a inteligência, a consciência moral, a liberdade, a morte e o ateísmo). Como se lê no texto conciliar: «É por Cristo e em Cristo que se ilumina o enigma da dor e da morte que sem o seu Evangelho nos esmagam. Cristo ressuscitou: pela sua morte, venceu a morte, deu-nos a vida em abundância para que, tornados filhos no Filho, clamemos pelo Espírito: Abba, Pai!» (Rm 8, 15). S. Paulo, a liturgia pascal bizantina e De Lubac no seu livro “Surnaturel. Études historiques” fundamentam aquela passagem. No cap. II trata da comunidade humana (interdependência entre o homem e a sociedade, o bem comum, o respeito entre todos, a igualdade fundamental, a responsabilidade e a participação), concluindo com o tema do Verbo incarnado e a solidariedade humana. Esta será consumada quando a unidade do género humano e o Reino forem realizados e nós libertados do pecado que divide. No cap. III esclarece-nos sobre a actividade humana (seu valor, ordenação, autonomia das realidades terrenas, o pecado, o mistério pascal) encerrando com o tema “Nova Terra Novos Céus). Não haverá uma destruição total mas sim uma transformação. A fé cristã é essencialmente escatológica no seu termo final e o que permanece na eternidade é a caridade: «Cristo entregará ao Pai «um reino eterno e universal: reino de verdade e de vida, reino de santidade e de graça, reino de justiça, de amor e de paz». No cap. 4 é exposto o assunto da Igreja e o mundo (as relações mútuas entre a Igreja e o mundo, o auxílio da Igreja à sociedade e à actividade humana e o apoio que ela recebe do mundo). Termina com o pensamento “Cristo, alpha e omega” citando o Ap 22, 12-13: «Eis que eu venho em breve e a minha retribuição é comigo, para dar a cada um segundo as suas obras. Eu sou o alpha e o omega, o primeiro e o último: o princípio e o fim». A 2.ª parte é consagrada a algumas questões premente como a dignidade do casamento e da família, o desenvolvimento da cultura (a sua importância, a suas relação com o Evangelho e a fé, o direito à cultura integral do homem e à necessidade de harmonizar a fé e a cultura. O cap. III trata da vida económico-social (ao serviço do homem e por ele controlado, as deficiências da economia, o trabalho, o destino universal dos bens, o capital, a propriedade e a actividade económica em relação a Cristo). O cap. 4 é dedicado à comunidade política (tendências, natureza, participação dos cidadãos, relações Igreja-Estado). O cap. 5 estuda a salvaguarda da paz e da construção da comunidade das nações (desumanidade das guerras, guerra total, corrida aos armamentos, eliminação das causas das discórdias, as comunidades das nações e as instituições internacionais, a cooperação internacional, o desenvolvimento demográfico e o papel dos cristãos e da Igreja). Fecha com uma conclusão em que fala da posição dos fiéis e das Igrejas particulares, do diálogo entre todos os homens e de um mundo a construir e conduzir ao seu fim.
2. «Bem-aventurados os obreiros da paz» (Mt 5, 9) é o tema da mensagem papal para o Dia da Paz, a 1 de Janeiro. Dividida em sete pontos, nela o Papa pede «um renovado e concertado empenho na busca do bem comum, do desenvolvimento de todo o homem e do homem todo». O Pontífice faz uma referência grave aos actuais conflitos sangrentos e ameaças de guerra diz: «Causam apreensão os focos de tensão e conflito causados por crescentes desigualdades entre ricos e pobres, pelo predomínio duma mentalidade egoísta e individualista que se exprime inclusivamente por um capitalismo financeiro desregrado. Além de variadas formas de terrorismo e criminalidade internacional, põem em perigo a paz aqueles fundamentalismos e fanatismos que distorcem a verdadeira natureza da religião». Mas o homem, na verdade, é feito para a paz, que é dom de Deus. Para nos tornarmos autênticos agentes da paz, escreve o Papa, são fundamentais a atenção à dimensão transcendente e o diálogo constante com Deus. O Pontífice recorda a oração com que se pede a Deus para fazer de nós instrumentos da sua paz, a fim de levar o seu amor aonde há ódio, o seu perdão aonde há ofensa, a verdadeira fé aonde há dúvida. Na mensagem há logo no início uma referência ao Vaticano II, «que permitiu dar mais força à missão da Igreja no mundo e constatar como os cristãos, Povo de Deus em comunhão com Ele e caminhando entre os homens, se comprometem na história, compartilhando alegrias e esperanças, tristezas e angústias, anunciando a salvação de Cristo e promovendo a paz para todos». O desejo de paz corresponde a um princípio moral fundamental, ou seja, ao dever-direito de um desenvolvimento integral, social, comunitário, e isto faz parte dos desígnios que Deus tem para o homem que é feito para a paz, que é dom de Deus e pressupõe um humanismo aberto à transcendência. O Papa aborda a ética da paz que é de comunhão e de partilha, a sua construção em termos racionais e morais da convivência fraterna, que se fundamenta num alicerce cuja medida não é criada pelo homem mas por Deus. Bento XVI afirma que todo o ser humano é envolvido pela paz na sua integridade pressupondo o empenhamento da pessoa inteira: é paz com Deus, vivendo conforme à sua vontade, é paz interior consigo mesmo e paz exterior com o próximo e com toda a criação. Recordando a encíclica “Pacem in Terris” do Beato João XXIII, «a paz implica principalmente a construção duma convivência humana baseada na verdade, na liberdade, no amor e na justiça». A paz não é um sonho, nem uma utopia; a paz é possível. Todos devem trabalhar pela paz que consiste, principalmente, na realização do bem comum a todos os níveis. Os caminhos para a implementação do bem comum são também os caminhos da paz. Os seus obreiros são aqueles que amam, defendem e promovem a vida na sua integridade. São vincados alguns aspectos importantes: o respeito pela vida humana desde a concepção, a questão da estrutura natural do matrimónio, os ordenamentos jurídicos, «a administração da justiça quando reconhecem o direito ao uso do princípio da objecção de consciência face a leis e medidas governamentais que atentem contra a dignidade humana, como o aborto e a eutanásia, os direitos humanos basilares mesmo para a vida pacífica dos povos e o direito dos indivíduos e comunidades à liberdade religiosa». Contra o liberalismo radical e a tecnocracia, convencidas de que o crescimento económico se deve conseguir mesmo à custa da erosão da função social do Estado e das redes de solidariedade da sociedade civil, bem como dos direitos e deveres sociais, há que considerar que estes direitos e deveres são fundamentais para a plena realização de outros, a começar pelos direitos civis e políticos. Entre esses direitos e deveres sociais está o direito ao trabalho: «A propósito disto, volto a afirmar que não só a dignidade do homem mas também razões económicas, sociais e políticas exigem que se continue «a perseguir como prioritário o objectivo do acesso ao trabalho para todos, ou da sua manutenção». No penúltimo ponto Bento XVI fala da educação para uma cultura da paz salientando o papel da família e das instituições e finaliza com uma alusão à necessidade de propor e promover uma pedagogia da paz que requer uma vida interior rica, referências morais claras e válidas, atitudes e estilos de vida adequados. E lembra que se deve renunciar à paz falsa, que prometem os ídolos deste mundo, e aos perigos que a acompanham. Do Vaticano II ao Dia da Paz de 2013 a mensagem do Deus Menino vivida no silêncio da fé continua a ser farol de esperança e a incutir o calor da caridade, virtudes que somos convidados a interiorizar na beleza e com o júbilo deste tempo de Natal.